![]() Comum em cidades barrocas por aí afora, ladeiras com piso de pedra são uma marca, lá no alto, no fim da subida, há sempre uma igreja, lá embaixo, em meio ao povo, há sempre algum pecado. Há sempre muita fé, misticismo e obstinação. Há também procissão com os fiéis em penitência, ladeira acima, em busca de salvar suas almas. Toda aquela gente, com seus cânticos e orações, são simples mortais (de carne e osso) expurgando seus pecados capitais.
Lembro-me da minha meninice numa certa cidadezinha*, em algum lugar no passado, em dia de procissão. Aquele menino movido por curiosa atenção, perseguia o cortejo em marcha lenta com os olhos atentos e repleto de elucubrações. Houvesse um caixão logo à frente do séquito, seria como um típico enterro de cidadela de interior, onde se acompanha o morto à pé até o cemitério.
Por aqueles idos, tudo ao redor remetia o imaginário a um passado distante. As casas antigas perfiladas como túmulos, nos dois lados da rua, compunham o cenário com suas janelas coloniais e portas imensas emolduradas por paredes envelhecidas. Pululava no pensamento qual o paradeiro daquela gente que viveu por ali num passado distante, onde estariam as suas almas ?
Procissões ao fim da tarde, como as que aconteciam na semana santa, eram sempre muito comuns. E no dia a dia, para a missa das seis, os fiéis iam ladeira a cima com o sino da igreja anunciando a Ave-Maria, em meio ao crepúsculo com o sol indo repousar atrás dos morros.
Não ferir os sacramentos era a condição para se chegar ao céu e, certamente, a luxúria era um dos pecados capitais que mais impunha aos pés a marcha solene morro acima em busca de alívio e perdão. Amor e desejo, o sagrado e o profano, o bem e o mal em duelo na mente dos simples mortais. A libido como ação do diabo a lhes entorpecer a alma com tentações latejando pelo corpo.
Chamava a atenção, na procissão, aquelas mulheres de longos vestidos cobrindo-lhes os tornozelos e véu a lhes ocultar os olhos. Para além das damas no cortejo, a cujos pecados haveriam de confessar junto ao padre, havia uma certa dama noturna de perfume doce e profundo que habitava por ali.
O badalar dos sinos no início da noite conclamava a dama da noite a se apresentar. Uma misteriosa e enigmática senhorita que expunha seu perfume ao anoitecer, quando se despia de seu véu para deixar à mostra suas delicadas pétalas brancas .Pois bem, à época diziam os mais velhos que ao iniciar a noite os demônios saem de suas tocas escuras à procura de almas desavisadas. E tal qual demônios afeitos à noite, também ao anoitecer, das fissuras das paredes das casas perfiladas, pequenas lagartixas surgiam e percorriam verticalmente as taipas devorando insetos.
À guisa de uma realidade paralela, aquela mente e olhos de criança tinha a inocência de anjo. Dizem que crianças são anjos na terra! Naquele cenário bucólica de casas antigas com seus muros de pedra e jardins de flores diversas, as lagartixas surgiam na mesma hora em que a dama da noite exalava o seu intenso aroma ao anoitecer. Aqueles bichos gélidos e de hábitos noturnos pareciam atender ao chamado dos sinos e ao brotarem das paredes se misturavam com o perfume daquela dama tão bem cheirosa. Tal divagação aqui escrita, provém da cabeça e mente de um menino que nutria os olhos curiosos ao investigar o bucólico cenário na subida da ladeira ao entardecer. De certa forma, por muito tempo achei que o doce perfume que flutuava desde o crepúsculo provinha desses pequenos répteis. O tempo passou, como sempre passa, e enfim a confusão foi desfeita, a dama da noite tem nome, trata-se da linda Cestrum nocturnum e o seu perfume é só seu.
Quanto aos pecados, os joelhos dos ascéticos postos aos pés do confessionário sempre darão ao corpo o direito de pecar e ser perdoado e à alma o acesso ao paraíso eterno. Pois, como disse Gregório de Mattos, braços abertos, cravados na cruz e olhos eclipsados que vertem sangue, estão despertos para perdoar e se fecham por não condenar.
* Itatiaia, RJ. Ton Costa
Enviado por Ton Costa em 22/06/2018
Alterado em 04/06/2025 Comentários
|