A Curruíra e o Dente de Leão
Os primeiros raios de sol mal rompiam a madrugada e a corruíra já se espichava toda no galho da tipuana. Sacudiu as penas, esticou as pernas e espreguiçou abrindo as pequenas asas. Sem ligar para o ruído do ir e vir dos carros na avenida resolveu gorjear.
Então mirou o viaduto e num ligeiro salto alçou vôo rasante, flores amarelas de dente de leão espremidas entre o cinza do concreto chamaram-lhe a atenção. Naquela manhã de primavera era possível ver aqui e ali, em meio a tanto concreto armado, algumas raras flores anunciando a estação mais perfumada do ano. Pousou desconfiado e espertamente saltitou pela marquise do viaduto alcançando a tão bela flor. Num mundo extenso de concreto e asfalto há muito tempo tornara-se raro ver pássaros e flores nas entranhas da cidade. A semente daquele dente de leão viajou no tempo e no espaço trazendo de gerações passadas a essência de sua existência. Queria uma porção de terra e água fresca para germinar, achou na pequena fresta do viaduto a única possibilidade de continuar a sua existência. Há tempos, corruíras e toda sorte de bichos celebravam a vida em meio a manacás, aroeiras, paus ferros e pitangueiras. Tudo era verde até onde os olhos enxergavam e os bichos eram tantos que não se podia contar. A primavera era mais colorida e perfumada. Desde o inicio dos tempos a natureza tem nos seus ciclos o seu modo de ser e a cada primavera as sementes do dente de leão, quando chega à hora, flutuam como bolhas de sabão e se espalham para dar continuidade à vida. E o bicho homem. Voraz como uma máquina devoradora de si mesmo ao dissociar-se do universo ao redor, fez-se o único dos seres e do que era ciclo procurou fazer linha reta. Hoje, os poucos pássaros que habitam a cidade voam sobre intermináveis ruas e avenidas que dividem o espaço em fragmentos lineares e ensimesmados. Pedaços mudos de uma aquarela cujas cores não se misturam e que no seu todo fogem à sua compreensão. A cidade desafia a beleza e sinuosidade cíclica daquilo que provavelmente o homem jamais será capaz de criar. Se do alto as águas caem após longos ciclos, a seu modo o bicho homem torna rios sinuosos linha reta, tal como o Tiete. A racionalidade se revela cega. E assim, onde havia aroeiras, paus ferros, pitangueiras, arco-íris, rios, riachos e estrelas a perder de vista, hoje há asfalto e concreto. O céu é enfumaçado. Na natureza em nada há finalidade em si mesmo, a corruíra e o dente de leão em seu conjunto são mais que pássaro e flor. E lá estava a corruíra, uma, duas, três bicadas e mais algumas sementinhas, um olhar ligeiro e desconfiado, um gorjear e mais algumas bicadas. Na avenida logo abaixo o caos estava instalado e em meio a tanto ruído e fumaça quem poderia enxergar aquele pequeno pássaro e o dente de leão? Entre idas e vindas em voos curtos, do viaduto ao seu refugio na tipuana, ficou ali pelas primeiras horas da manhã. Já era quase meio dia e o sol alto dava mais brilho ao colorido daquela flor. Então tendo enchido o papo e celebrando a primavera, a corruíra resolveu visitar outras paragens. Alçou vôo e desapareceu no céu esfumaçado. Gladyston costa
Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 22/06/2018
Alterado em 06/12/2021 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |