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Segundos no farol e a vida
16 de abril  de 2020, seis e pouco da manhã, o farol fechado e os carros parados no cruzamento da Avenida Cruzeiro do Sul com a Zaki Narchi, corre acima da avenida a linha do metrô, estende-se entre a zona norte e a zona sul da capital. As altas pilastras que sustentam os trilhos estão decoradas com grafites coloridos de diversas tendências. O canteiro central sob o elevado divide a avenida ao meio, é entremeado por uma extensa ciclovia e há tempos se tornou o abrigo de destelhados.  

Ali, indiferente ao movimento dos carros ao redor, pessoas dormindo ao relento debaixo de barracas de lona, trapos e papelão, em meio a baratas e ratos.  

Como para todos os mortais desse mundo, o dia também começa para um grupo de sem tetos logo no cruzamento, pelo para brisa do carro dá pra ver um senhor idoso se levantar com dificuldade, ele é assistido por duas moças jovens e uma mulher, ao lado quatro crianças pequenas brincam pulando sobre um colchão velho.

Qual será o café da manhã?

Horas antes, na véspera, essa família já estava ali se preparando para o anoitecer. O jantar preparado no chão de cimento em latas velhas carbonizadas. No mesmo horário nas salas de estar, as TVs exibem o telejornal e trazem noticias sobre o crescente número de mortos por uma virose assassina.
A tela de plasma vende mercadorias, enquanto os miseráveis, pretos, piolhentos e desalmados lá fora, são apenas adjetivos pronunciados pela indiferença e miséria social.  

Nos diversos canais as noticias são entremeadas por novelas idiotas e por charlatões neopentecostais que cobram o dízimo. Produtos e marcas são oferecidos como sinônimo de felicidade, enquanto a moça com top de grife faz ginástica solitária, é o comportamento da moda.  

O mundo vive a quarentena da COVID 19 e impõe restrições, exige isolamento social. Sim, os terraplanistas com uniforme da CBF não acreditam na doença, relincham e apontam raivosos para a distante China.  

O farol permanece fechado e do carro dá pra ver as crianças em meio à ruidosa indiferença da avenida, brincam e exalam a mais pura inocência de um serzinho humano. Segundos são horas e estáticos os automóveis decoram a caótica paisagem, enquanto seus ocupantes seguem apartados do mundo lá fora.

Vai longe o pensamento quando se observa a cena sob o metrô, em meio à arquitetura urbana há Marias e josés morando nas ruas. Gente cuja sala de estar é a calçada encardida da avenida. Não há sofá, não há cama, não há fogão e mesa de jantar, nem tão pouco uma porta que se abra para um mundo de esperanças, pois onde vivem não há porta.

Não é preciso muito para perceber que há algo de muito errado com este mundo, o mundo maravilhoso das novelas e das promessas dos falsos profetas não existe de fato, é apenas uma mentira e a grande massa de miseráveis segue sobrevivendo de migalhas.  

A lógica por traz da matemática é a de que para que alguns poucos vivam de forma abastada no topo da pirâmide econômica, é necessário que o sistema político sustente a lógica da horizontalidade social, se não é assim, então como migrar do leito sob o viaduto para o quarto de luxo ilustrado na novela das oito?

É crescente a miséria e está esta estampada nas ruas, de um lado a especulação imobiliária e do outro um mar de gente sem teto.  

O semáforo abre, os carros seguem, e pelo retrovisor as crianças e sua família vão ficando para traz, diluem-se em meio aos trapos. Com a distância cresce um misto de desesperança e indignação. Fica a certeza de que para que haja um mundo mais justo e harmonioso, é necessário desconstruir o atual.
Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 17/04/2020
Alterado em 17/04/2020


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