voo de palavras

Infinita poesia

Textos

Que ventania essa noite!

A ventania veio de longe, lá do sul, encrespando as águas do mar, lambendo o chão e cuspindo árvores. Era madrugada e os sinos dos ventos na varanda balançavam eufóricos e entoavam notas que desciam e subiam na escala musical e por vezes, se misturavam anárquicas. Um assovio fino trouxe ao presente a figura de um moleque preto, perneta, com gorro vermelho e cachimbo na boca. Ajustei os ponteiros do tempo e retrocedi algumas décadas passadas. Rolei na cama e mesmo sem sair debaixo do edredão fui até lá fora. Da porta da sala vi os imensos paredões de concreto dos prédios ao redor dissolver e darem lugar a um quintal muito largo, com pés de frutas e horta. Cheiro de mato e terra molhada. Mais adiante vi a cerca do pasto e o bambuzal. Corri até a cozinha da vó Silva e vi sobre o fogão de lenha a peneira de palha, já um pouco surrada de tanto catar feijão. Era o que eu precisava pra pegar o Saci-Pererê, só faltava agora um garrafão com rolha pra prender o danado.

O vento rodava pelo quintal e o cata-vento no telhado quase voava. Novamente aquele assovio longo e agudo, só podia ser ele. Corri até o bambuzal e vi um redemoinho levantar poeira, depois outro e mais outro, as folhas secas girando como bailarinas. Só pode ser ele!

Eu sempre achei que redemoinhos-de-poeira são filhotes de furacão, crescem e dão trabalho, mas quando brotam no bambuzal é porque é o saci fazendo das suas. Num golpe rápido, como se jogasse uma tarrafa, lancei a peneira. O redemoinho cessou, pensei, peguei o danado. Tomei do garrafão, tirei-lhe a rolha e me preparei, tem que tirar o gorro do saci! ... Levantei a peneira e não tinha nada lá, acho que fugiu pelos buracos entre as palhas.

Havia aprendido com o meu tio Nem como capturar essas criaturas. Acho que ele foi o maior caçador de saci que existiu pelas bandas das Minas. Ele sempre falava das travessuras com gente e com bicho, do assobio estridente e que o poder do saci tá no gorro.

- É bicho endiabrado que esconde as coisas, dá azar, faz queimar a comida e espanta os bichos.

Olhei ao redor e vi no pasto, depois da cerca de arame farpado, logo adiante, a égua crioula resfolegando e inquieta. Fui checar-lhe as crinas, é sabido que sacis lhes fazem tranças e logo vi que havia dreadlocks até no rabo!

Por essas horas os sinos dos ventos já não balançavam mais e a ventania se retirava rumo norte levando consigo o saci. Puxei a coberta até acima dos olhos e lentamente a cerca de arame farpado, a égua crioula, o bambuzal, o fogão de lenha na cozinha e as plantas no quintal se desfizeram num sono profundo.

Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 01/07/2020
Alterado em 08/12/2021


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras