O relógio no alto do prédio
23 graus e vinte e três horas marca o relógio espelhado na parede do prédio logo adiante. As avenidas desalojam os últimos automóveis do rush de horas antes, pelas calçadas pessoas em passos apressados. Sobre o piso frio da cidade, em desalento, sonhos apagados mergulham em trapos e jornais. A esquizofrenia lógica da cidade, a incongruência disruptiva de palavras sem sentido buscando nexo nessa gente marginal. O desalento faz parte da paisagem.
Vinte e três graus Celsius, temperatura amena pra esse começo de dezembro, mais uma década está por terminar, já são duas neste século. Pela Doutor Arnaldo o relógio espelhado na parede do prédio adiante denuncia, o tempo não para. Pelas laterais da avenida paredes perfiladas tangenciam o asfalto, cravejadas de janelas são museu vivo do tempo que acontece agora. Lembrei-me do velho Lutz, nono andar, das janelas do laboratório costumava contemplar o cemitério em primeiro plano na paisagem, o do Araçá, no horizonte sonhos juvenis. Eu era estagiário e as três décadas seguintes passaram com velocidade estonteante. Pelo caminho no asfalto, enquanto dirijo, lembro-me dos rostos, pelo caminho do tempo transcorrido, lembro-me dos sonhos. A avenida agora, nesta altura da noite, é uma passarela de sensações que só brotam quando a mente está vazia. A paisagem composta de prédios e luzes é tangível à racionalidade, há muitas formulas matemáticas e conceitos de física subjacentes a cada tijolo empilhado. Mas há paixão, arte e poesia, mesmo em tanto concreto armado. Vinte e três horas, vinte e três graus Celsius, marca o relógio na parede do prédio...e mais adiante uma imensa torre iluminada de metal aponta para os céus. Tenta rasgar a imensa bolha de luzes refletidas que roubam as estrelas. Galáxias e infinitude permeiam o espaço lá fora e por essas horas guio o meu carro nesta linha de reticências intermináveis. Verdadeiramente o bom de romper as barras de ferro e livrar a mente da rotina, é o fato de poder pisar no espaço por entre as estrelas. As sensações que brotam são tão intangíveis à razão quanto as coisas relativas à paixão e ao amor. Dirigir o carro pela avenida nessas horas traz esse mix de coisas indecifráveis, um diálogo entre a cidade e os sentidos. A linha sobre a borda entre mundos que se comunicam por códigos indecifráveis. Mas é só por que a mente está livre e desobrigada. E então, enquanto a cidade se recolhe, um mundo à parte se apresenta. Mais algumas voltas dos ponteiros e outro dia vai começar, sigo pelo caminho.
Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 26/03/2021
Alterado em 26/03/2021 |