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O mendigo e o frango
A figura inusitada de um homem maltrapilho, de cócoras, depenando um frango, no canteiro central da avenida marginal Tietê, trouxe à mente a cena dos homens primitivos assando a caça na entrada da caverna. Há tempos, certa vez, dirigia o meu carro, no meio do dia, no sentido oeste e deparei com aquela figura um tanto quanto anacrônica. Barbas e cabelos como um emaranhado de fios de arame, a pele muito encardida coberta por trapos. Uma lata grande dessas de 20 litros, usadas para armazenamento de coisas como óleo de soja ou tinta látex, fazia às vezes de panela e estava prestes a receber aquela iguaria. As labaredas de fogo lambiam a lata em um fogão improvisado com pedras e a fumaça cinza espalhava pelo ar o odor de lenha queimada. Pois é, o ditado diz “somos o que comemos” e a existência é impossível sem a comida.

Em meio ao transito intenso em uma avenida que é artéria de maior calibre na metrópole, com caminhões carregando cargas valiosas e automóveis em seu transporte solitário, o mendigo de cócoras estava absolutamente alheio e tão distante quanto o tempo em que os primeiros hominídeos cozinhavam tendo dominado o fogo. Lembrei-me da importância da cozinha na vida das pessoas, as festas nas casas, das mais humildes às mais ricas, o principal ingrediente sempre foi a comida. Já reparou como a cozinha, onde fica o fogão, é o epicentro desses encontros sociais? Não por acaso virou febre na televisão programas de gastronomia com cozinheiro (a)s com status de estrela e torneios questionáveis de quem faz esse ou aquele prato com maior destreza e velocidade. Espirituosamente é possível conceber que o alimento é sagrado e deve ser compartilhado com harmonia e agradecimento, sem pressa.

É fato que o fogo de chão ao redor do qual se preparava a comida evoluiu para os ultramodernos fogões a gás ou eletricidade, instalados em bancadas gourmet, ao redor do qual o bicho homem ainda se reúne. Estar perto do fogo exerce certo fascínio, é fator de sobrevivência e coesão social. A modernidade não foi capaz de nos desconectar de nossa ancestralidade, o fogo faz parte da evolução humana e está em nosso DNA essa relação. Apesar das agruras sociais destes tempos, do fest-food e da artificializarão do processo nutricional, a cozinha ainda faz às vezes da fogueira e nutre a base do tecido social.

Três pares de décadas passaram desde aquela inusitada cena na marginal tiete, os tempos são outros, estamos em pleno caos mundial representado pela pandemia COVID 19. O já, há tempos, esgarçado tecido social está como trapo carcomido e traz à cena uma profusão de desalentados vivendo em lonas e barracas de camping pelas ruas. É rotineiro ver grupos de pessoas nas calçadas e praças públicas cozinhando em latas carbonizadas, em meio à fumaça da lenha queimada.

O que dizer?

O bicho homem faz conexões sinápticas em tal volume e qualidade que lhe possibilita a racionalidade e o diferencia de outros tipos de bichos.  Mas, é incrível como o avanço da sociedade tecnológica não foi capaz de dividir as suas benesses de forma minimamente equânime com os seres humanos que habitam este planeta. Recorrer a latas velhas, pedaços de pau e sobras recolhidas no lixo ainda é o meio de sobrevivência de uma grande parcela da humanidade.

Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 06/04/2021
Alterado em 11/06/2023


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