voo de palavras

Infinita poesia

Textos


Anjos ou demônios?

 

Cães vagam por entre sombras em uma madrugada de verão, perfilados no passeio, se debruçam contra o abismo do meio fio. São treze e de tão negros, reluzentes. Belos e desprovidos de lógica desafiam a retina e a credulidade. Pela avenida a madrugada expele solidão e esses seres são a única companhia. Que visão singular, enormes cães de pelos negros brilhantes perdidos pela metrópole.

 

A manta de asfalto sobre a avenida, horas antes, com a luz do dia, foi palco de um teatro de superficialidades e agora é o cenário de um scripte que a mente anseia em recordar. A noite na cidade é a morada da solidão e há um abismo entre a luz e as sombras ocultas nos becos e no medo, mas há poesia. A boemia dos bares, dos bêbados, dos boêmios e vagabundos passeia tranquila nas páginas de histórias policiais e de romance. A noite na cidade das sombras exerce o seu fascínio.

 

Há anjos da guarda, talvez.

 

Aqueles cães surgiram como um feixe de luz no escuro, enquanto caminhava pelo passeio os vi perfilados um a um à minha esquerda, poucos metros. Eu os mirava, em uma mescla de contemplação e tremor, enquanto cruzava a avenida.

 

A sensação da alma abandonando o corpo foi o que sucedeu ao terminar a travessia e alcançar o lado oposto da avenida. A breve caminhada, que se revelou infinita na memória, teve a companhia dos treze cães perfilados (...) que de tão negros, reluzentes. Um a um, ao terminarem o périplo e tocarem o lado oposto da avenida, desintegraram-se no ar como vapor.

 

Anjos ou demônios, razão ou narcose? Não importa.

 

Meus pés aceleraram tão rápido quanto à pulsação e o vento que tocava o rosto era ventania. Incontinente vaguei por refúgio madrugada adentro. Como é possível cães, que de tão negros, reluzentes, dissolverem no ar?!

 

O que reluz de superfície tão escura é puro mistério, que desintegra quando as portas da percepção se fecham.

 

A mente se perdeu na construção daquele cenário e certa poesia se instalou em viagens e questionamentos. Cães solitários e marginais vagando em grupo surgiram como espírito. Escorriam pelo espaço. Em grupo, mas cada qual matilha de si mesmo. Não se olhavam, só seguiam à frente. Em sua travessia pela avenida, pisavam no meio fio e escorriam pelo asfalto como espírito sem peso. Teriam um dono...? Ou pertencia cada qual a si mesmo? Provinham de um canil ou do além...? Cães assim, sem nome e sem casa, certamente vagam porque é só o que resta. Almas desprovidas de matéria em uma dimensão inalcançável aos cinco sentidos, certamente. Aqui passado e presente se misturam em frases que revelam a pura perplexidade. Mas, de certo, o meio fio se revelou um imenso abismo, onde os sentidos mergulharam em busca de pousar num solo de explicações lógicas.

 

Um a um cada cão mergulhou naquele abismo sem regras ou comandos e se revelaram sombra sem corpo. Em meio à avenida, de sentidos que se perdem, o medo tem a cor da escuridão e a mente cria seu próprio mundo.

 

Mas certamente formou-se, naqueles poucos segundos de travessia pela avenida, de um lado ao outro lado, uma passarela por entre mundos paralelos de infinitas dimensões, para muito além de uma terceira. Um mosaico de percepções se instalou.

 

Talvez observar cães se dissolvendo no ar em meio à madrugada seja apenas roteiro para poesias e especulações. Mas aconteceu e a retina que hora observa o papel branco à frente, na tela do PC, é a mesma que faz conexões entre os neurônios e o teclado.

 

Cães negros na madruga,

Apenas sombra em sua morada.

 

Por essas horas a travessia pelo asfalto é apenas a área de contato entre medo e coragem, luz e sombra, realidade e imaginação e aqueles cães, certamente, continuam em seu passeio marginal em algum mundo paralelo desse imenso universo.

 

 

Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 30/10/2021
Alterado em 23/05/2022
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras