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A bênção Dona Florinda

O outono caminhava a passos miúdos e lá estava Dona Florinda, como sempre, no início da tarde, no portão a contemplar o mundo na pequena Itatiaia.

 

A casa simples de varanda com imenso quintal cheio de bananeiras, parecia um quadro de paisagem preso na parede do tempo. Peças velhas de mobília,quadros velhos nas paredes, assoalho carcomido e mato crescido para cortar. Uma filha com 80 e um neto com os seus 60.

 

Dia após dia, por anos a fio, com sol ou chuva, lá estava ela, o gesto repetido religiosamente e de forma litúrgica. Do alto da sua existência centenária, rosto rosado, cabelos brancos, pele talhada pelos anos e vestido de chita roçando os calcanhares. Aquela figura de semblante extemporâneo era parte integrante de um bucólico contexto.

 

Quase sempre aquela cidade era pacata e o tempo, por si só, parecia parar.

Fincada no sopé da serra das Agulhas Negras, a monotonia ali só era ligeiramente quebrada nas férias escolares, quando gente vinha da "cidade grande" descansar.

 

Na calma das horas do dia a dia, os afazeres de Florinda eram escassos e o pouco que se havia de laborar, era repetido metodicamente na casa da velha senhora.Pela manhã coar o café e depois colher o feijão, dar milho às galinhas, varrer a casa, cozer o almoço, lavar as panelas e ir ao portão (...) .

 

O portão parecia ser a fronteira entre o tempo e o espaço. Andava a passos cansados e em seu limite possível. Há tempos a maior distância percorrida era ali. O mundo possível era a rua de terra batida às vezes visitada até o limite do quintal na esquina.

 

De extensão de não mais que um paço de léguas e em ligeiro declive, a Cônego Bulcão recolhia ao seu domínio os pés de manga-espada, goiabeiras, bananeiras e uma profusão de flores silvestres. Cenário pintado à tinta óleo na memória do adulto que agora escreve.

 

Vez em quando, vindo lá da beira do rio Paraíba descia a boiada, vez em quando chovia e descia a enxurrada, quase sempre o vento soprava e sempre tinha toda aquela passarinhada, sábias, coleirinhos,bigodinhos,bem-te-vis, sanhaços e muito mais.

 

Do primeiro plano ao infinito, Florinda parecia percorrer com os olhos miúdos cada espaço possível, ali no portão com o sol descendo a oeste, fazia de uma vara de bambu às vezes de bengala. Muitas vezes a vi cutucando o mato próximo à cerca, diziam que ela procura objetos perdidos no passado, talvez dinheiro.

 

Com o corpo arqueado pelo tempo, caminhava se equilibrando nas cambotas com a mente quase ausente.

 

As estações do ano se alternavam trazendo cada qual o seu aroma, a sua textura e enredo e no início de cada tarde, Dona Florinda sempre no portão a fazer parte do mundo.

 

No verão, a brisa quente vinda do leste lhe balançava os cabelos, no outono o minuano lhe beliscava as orelhas, no inverno ela sempre de lenço na cabeça e na primavera o cheiro das flores a lhe fazer carícias no nariz.

 

Em certa férias de verão eu descia a rua em passos de menino e como era comum, por aquelas bandas, ao se deparar com os bem mais velhos, exclamei:

 

- À benção dona Florinda!

 

Ela com esforço me examinou com os olhos do fundo do túnel do tempo e de uma voz rouca escutei:

- Deus abençoe meu filho, vá com Deus.

 

A voz parecia ter escalado cordas de sisal desgastadas e flutuado num ar quase ausente.

 

Segui pelo caminho.

 

O menino desceu a rua e dobrou a esquina em meio à poeira do tempo. Cinco décadas depois aquela voz abençoando ainda ecoa em meus ouvidos.

 

Gladyston Costa
Enviado por Gladyston Costa em 04/12/2021
Alterado em 07/12/2021


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