O dono da bola escolhe o time

Na Avenida Conego Bulcão tinha um campinho de futebol, às vezes pasto com capim. As ruas eram de terra e o mato ao redor com tantos pés de manga e de goiaba completavam o cenário. Eu era moleque e como tantos outros naqueles anos 70, adjetivos como Pelé, Rivelino e Tostão eram qualidades a serem alcançadas. O sonho de dez em cada dez moleques era ser craque de bola, num futuro que haveria de chegar. Naqueles idos, a molecada jogava no campinho, de pés descalços, até a luz do sol se pôr, apagado os refletores, todos se retiravam de campo em meio à magia da torcida aplaudindo de pé nas arquibancadas imaginárias. Certa vez ganhei uma bola de capotão, do meu pai, era natal, aquele presente, o maior sonho possível!

O dono da bola escolhe o time, eu o craque.

Durante o jogo, pala falta de trato com a bola nos pés, de centro avante, ponta esquerda ou direita, fui recuando, até ser zagueiro e, por fim, estava embaixo das traves de bambu, tudo por força da natureza (falta de habilidade com a bola), o goleiro atua com as mãos.

Décadas passaram, não tem mais as ruas de terra, o campinho agora é prédio, e já não é possível escutar o mugido do gado, de tão longe onde foram parar. É sintomático, há poucas semanas uma outra bola, não a de futebol passou a abrigar oito bilhões de pessoas, a Terra. As várzeas dos rios em tantas cidades por aí afora, onde antes havia campos pro jogo de bola, se transformaram em asfalto e cimento armado.

A nostalgia que emana dos teclados e transborda na tela, dialoga com o presente, pois hoje, quatro décadas depois, em meio a um mundo muito diferente daquele, é novamente época de copa do mundo. Tem jogo da seleção canarinho, as ruas expelem futebol e até quem não sabe quantos jogadores entram em campo, entram no clima.

Vou ser sincero, já não ligo mais tanto pra futebol, mal conheço quem compõe a escrete verde e amarela. O jogo de bola de sonhos da molecada virou um negócio da China, das Arábias, da Europa, ou sei lá de onde, mas é certo que futebol virou uma coisa muito comercial. A coisa perdeu muito da graça e a seleção mal têm conexão com a brasilidade.

E o que se vê? E a pelada culturalmente raiz? Não tem mais campinho de terra, não tem mais campo de várzea, cada pedacinho de chão tem alto valor monetário. Hoje em dia, o que se vê, são escolinhas de futebol com grama sintética e os sonhos da molecada são mercantilizados. A brincadeira das arquibancadas imaginárias com a torcida aplaudindo de pé no campinho, ficou no passado. Nos dias atuais não tem espaço para a meninice de pés no chão, o Mercado dá o tom e o futebol virou apenas negócio. Aqui, até sonhar custa caro.

PS: Nelson Rodrigues dizia que "no futebol, o pior cego é aquele que só vê a bola”

*A avenida referida no texto fica na cidade de Itatiaia/RJ.